Sunday, April 29, 2012
A história de Mfundi
A
história de Mfundi
Sentado
sobre uma pedra lisa, Mfundi contempla a árida paisagem africana que
se estende a seus pés, a perder de vista.
O
sol, na sua descida preguiçosa, vai pintando o céu com matizes de
violeta, azul e laranja, até se transformar numa imensa bola de fogo
que, em breve, mergulhará na terra, lá bem longe.
Em
seu redor, tudo é silêncio. O mundo pára, por um instante, quando
um pássaro cruza os ares e leva consigo o olhar escuro e brilhante
da criança, fazendo-o perder-se no infinito.
Lá
longe, muito longe, está o pai que nunca conheceu.
A
terra é pobre e a água escasseia; por isso, um dia, teve de partir
à procura de trabalho, deixando para trás a aldeia, o casebre, os
cinco filhos e a mulher, carregando mais uma criança no ventre.
O
semblante de Mfundi fica carregado. De todos os irmãos, ele foi o
único que nunca conheceu o prazer de se sentar no seu colo, de ouvir
a melodia da sua voz, de ver o seu próprio reflexo nos olhos negros
do homem que lhe deu o ser.
A
mãe, seca e envelhecida, luta diariamente para que a família
sobreviva. Anos e anos de trabalho duro foram, a pouco e pouco,
acabando com a mulher robusta e alegre que em tempos fora.
Para
dizer a verdade, Mfundi apenas conhecera a sombra dessa mulher...
Com
um suspiro profundo, o garoto voltou a fixar os olhos no horizonte.
O
seu coração de menino guardava um desejo secreto. Sim,
secreto porque não sabia se, alguma vez, o
poderia concretizar...
O
maior sonho de Mfundi era ter um par de sapatos! Assim, poderia
enfrentar as pedras aguçadas do caminho, a areia escaldante, os
espinhos e partir ao encontro do pai, rumo à Cidade Grande. O menino
tinha a noção de que, sem os preciosos sapatos, nunca poderia
empreender tamanha jornada.
Mas
não tinha como os conseguir...
Na
sua aldeia pobre ninguém usava sapatos e, mesmo que os houvesse, a
mãe não teria dinheiro para lhe comprar uns.
Nem
Mfundi teria a coragem de lhos pedir... Os olhos tristes da mãe e o
seu ar permanentemente cansado impediam-no de tentar sequer formular
o pedido. Além disso, ela também andava descalça, carregando
pesadas latas com água à cabeça debaixo de um sol escaldante. Sem
um queixume...
Um
dia, apareceram na aldeia umas pessoas que suscitaram a curiosidade
geral; tinham pele pálida, quase transparente e cabelos lisos,
também claros. Traziam consigo umas máquinas barulhentas - Mfundi
já as vira algumas vezes – que assustaram os poucos animais da
aldeia e puseram os meninos mais pequenos a chorar.
Com
eles, vinha um homem de pele tão escura como a dos habitantes da
aldeia e que entendia a língua estranha que os forasteiros falavam.
Mfundi
escondeu-se atrás da mãe quando o grupo de forasteiros se aproximou
do casebre onde ele e a família viviam. Aquelas criaturas de pele
pálida pareciam saídas das histórias que os anciãos contavam ao
cair da noite, à fogueira e que, muitas vezes, o deixavam acordado
durante horas, com a imaginação a trabalhar a toda a força.
Mas,
talvez por ter tentado passar despercebido, o menino chamou a atenção
dos forasteiros.
Um
deles, uma jovem de cabelos lisos e amarrados na nuca com uma espécie
de tripa, disse qualquer coisa ao homem que tinha a pele semelhante à
dele. Este aproximou-se do garoto.
-
Rapaz, eles querem saber o teu nome! - disse ele.
Mfundi
arregalou os olhos negros e tentou esconder-se ainda mais, atrás da
mãe. Mas o outro não desistiu:
-
Então, rapaz? Não tens língua?
O
menino engoliu em seco, arranjou coragem e respondeu:
-
Chamo-me Mfundi! - a voz saiu muito fininha e o garoto ficou
aborrecido.
O
homem traduziu a resposta para os elementos do estranho grupo e a
jovem de cabelos presos voltou a falar:
-
Mfundi, nós pertencemos a uma organização (foi difícil ao
tradutor arranjar um sinónimo para esta palavra) que ajuda crianças
aqui, em África. Andamos pelas aldeias a distribuir brinquedos
doados por meninos de outros países e gostaríamos que escolhesses
uns para ti!
Após
ouvir a tradução que o homem com a pele igual à dele fez, Mfundi
hesitou um pouco.
-
Eu só queria ter um par de sapatos! Uns ténis! - exclamou ele, para
espanto de todos.
As
pessoas da aldeia entreolharam-se, boquiabertas. Um par de sapatos?!
Quanta presunção! Quem pensava aquele miúdo ranhoso que era?
Ninguém na aldeia os usava!
Mas
os olhares trocados entre o grupo de forasteiros foi de surpresa e
admiração.
Mfundi
sentiu-se na obrigação de explicar o porquê daquele pedido:
-
O meu pai partiu para a Cidade Grande, lá longe, há muito tempo...
antes de eu nascer! Sou o único dos meus irmãos que não o
conhece... Os sapatos servir-me-iam para ir à procura dele;
descalço, não irei longe! Eu estou habituado a andar sobre estas
pedras e já conheço os caminhos à volta da aldeia e para as aldeas
vizinhas como a palma das minhas mãos. Mas a Cidade Grande é muito,
muito longe! Sei disso porque, desde que foi embora, nunca mais
tivémos notícias do meu pai! Isso só pode significar que está tão
longe que, qualquer notícia que tenha mandado, ainda vai demorar
muito a chegar... Mas eu queria tanto conhecê-lo, falar com ele e
pedir-lhe que me ensine o que ensinou também aos meus irmãos, que
decidi ir ao encontro dele... - parou para recuperar o fôlego e
rematou: - Mas para isso, preciso de sapatos...
O
homem com a pele igual à dele traduziu o que o menino dissera. Ao
levantar a cabeça, Mfundi deparou-se com os olhos rasos de água da
jovem de cabelo amarrado. Os outros elementos do grupo de forasteiros
pareciam igualmente tocados pelas suas palavras.
-
Mfundi... murmurou um senhor de cabelos tão brancos como a lua. - No
lugar de onde venho, os meninos da tua idade têm tudo o que querem e
nunca estão satisfeitos... Nenhuma das nossas crianças se
contentaria apenas com um par de sapatos, se lhes fosse concedida a
oportunidade de escolherem brinquedos. Muito menos para levar a cabo
uma tarefa tão nobre como a de trazer um pai de volta ao lar e à
família! - e, segurando na mãozinha do menino, apertou-a. - Eu
próprio me assegurarei que receberás o calçado mais adequado para
caminhadas neste solo tão acidentado... Não sei se conseguirás
encontrar o teu pai, mas desejo sinceramente que sim! Quanto a mim,
regresso a casa muito mais rico pelo simples facto de te ter
conhecido!
O
sol do meio dia caía a pique sobre a aldeia quando uma das mulheres
deu o alarme: um homem desconhecido estava inanimado perto do local
onde se encontravam os animais da pequena comunidade. Parecia ter
perdido os sentidos por causa da sede e tinha os pés em sangue.
De
imediato, o desconhecido foi trazido para a barraca do feiticeiro da
aldeia e as mulheres apressaram-se a dar-lhe água e preparar
unguentos com ervas para lhe tratar das feridas dos pés.
Mfundi
e as outras crianças da aldeia giravam em volta dele, curiosos. O
desconhecido, pouco a pouco foi recuperando as forças e, em breve,
já dava pequenos passeios pela aldeia. Ansiava por ficar
completamente curado para prosseguir o seu caminho.
Um
dia, chamou Mfundi e sentou-se à sua frente.
- Tu
tens sapatos... - disse ele.
Não
era uma pergunta, mas uma afirmação.
-
Sim; vão servir-me para ir à procura do meu pai! Ainda estão um
bocado grandes, mas não faz mal!– respondeu Mfundi, orgulhoso.
O
desconhecido baixou os olhos e engoliu em seco.
-
Eu queria pedir-te que mos emprestasses... - perante o olhar
assombrado do garoto, o forasteiro acrescentou. - Eu venho de longe.
Na minha aldeia não há trabalho e a comida e a água não chegam
para todos... Os animais há muito morreram à fome... a minha
família também está a morrer do mesmo mal e eu sou a única
esperança deles... Por isso me pus a caminho da Cidade Grande, onde
espero arranjar um emprego. Mas já percebi que, descalço, não
conseguirei lá chegar... Eu sei que estás a guardar os sapatos
para, quando juntares comida e vestuário suficientes, ires procurar
o teu pai. Mas, Mfundi, não tenho mais ninguém a quem recorrer. Por
favor, ajuda-me1 Ajuda a minha família...
Mfundi
sentiu-se como se o mundo tivesse desabado sobre a sua cabeça. As
suas costas curvaram-se e, repentinamente, pareceu muito mais velho
do que os seus 9 anos. Cerrou os olhos e soltou um suspiro, nascido
bem lá no fundo da alma.
-
Está bem... – aquiesceu. - Eu empresto-te os meus sapatos... Não
quero que a tua família morra à fome, nem quero que corras o risco
de não conseguires chegar à Cidade Grande por não teres com que
proteger os pés... - as lágrimas pareciam querer saltar-lhe dos
olhos. Mas Mfundi sabia que, se as deixasse correr, muitas mais
viriam atrás das primeiras. - Porém, tenho uma condição...
O
forasteiro abriu um enorme sorriso e apertou o menino fortemente
contra o peito.
-
Obrigado, Mfundi! Muito obrigado! Qualquer que seja a condição,
quero que saibas que está, desde já, aceite! Não tenho palavras
suficientes para te expressar a minha gratidão e espero que a tua
generosidade seja recompensada, mil vezes, ao longo da tua vida!
-
Quero que dês estes sapatos ao meu pai, se alguma vez o
encontrares. Pode ser que ele próprio não consiga fazer o caminho
de regresso, por ser forçado a percorrê-lo descalço! - suspirou
Mfundi, enxugando uma lágrima teimosa que insistia em descer pelo
seu rostinho escuro. - Por isso, se alguma vez te cruzares com ele,
dá-lhe os sapatos que te ofereço agora, para que possa voltar para
junto de mim, dos meus irmãos e da minha mãe!
Sentado
sobre uma pedra lisa, Mfundi observa, agora, a lua que nasce no
horizonte. Branca, majestosa, um enorme ponto de luz num céu povoado
de pontinhos luminosos.
Mfundi
contempla-a, com os seus olhos líquidos, imaginando se, algures, o
pai também estará a olhar para ela.
O
coração e a alma das crianças são fontes inesgotáveis de sonhos
e esperança. E Mfundi, afinal, nem pede muito...
Quem
sabe se o pai não terá já iniciado a viagem de regresso a casa?
Quem
sabe se também terá tido a sorte de encontrar alguém que lhe tenha
dado um par de sapatos para a jornada?
Quem
sabe se não chegará já amanhã?
Quem
sabe...
Thursday, April 26, 2012
O Espantalho que queria voar
O Espantalho que queria voar
Era
uma vez um espantalho que queria voar; dia após dia, o seu olhar
perdia-se no enorme azul do céu e nas nuvens. Dava por si a seguir,
com inveja, o vôo livre dos pássaros em verdadeiras acrobacias
aéreas que, lá do alto, pareciam troçar da solitária figurinha de
palha, bem plantada no terreno da horta, observando-os
silenciosamente.
-
Um dia, também hei-de voar! - murmurava ele para os seus botões,
enquanto soltava um profundo suspiro.
-
Tem juízo, Espantalho! - ralhavam as flores, as joaninhas, as
formigas e os ratinhos do campo. - Então não sabes que os
espantalhos só servem para assustar os pássaros impedindo, assim,
que comam as sementes plantadas pelos agricultores?
“Assustar
os pássaros?!”, admirava-se o espantalho. “Ora essa!” Logo ele
que gostava tanto de pássaros, fossem eles pardais, andorinhas ou
mesmo corvos. Afinal, conseguiam realizar uma notável proeza: voar!
E
encolhia os ombros de palha, enquanto voltava a fixar o enorme azul,
que lhe parecia tão distante.
Ficava
a imaginar quantas coisas poderia avistar de lá do alto: lagos de
côr turquesa, montanhas cobertas de neve branca e cintilante e
maravilhosas florestas esmeralda onde – tinha ouvido dizer –
viviam criaturas mágicas, pequeninas e ágeis, que brincavam às
escondidas por entre as flores...
-
Diabo de espantalho! - resmungava o lavrador, trazendo-o de volta à
realidade. - Dir-se-ia que tem vontade própria! Todos os dias o
deixo de braços abertos e lhe componho um ar ameaçador... mas, à
noitinha, quando venho de tratar os campos, lá está ele com os
braços caídos e esse aspecto miserável que não consegue, sequer,
assustar uma borboleta... Até parece que faz de propósito! - e, no
meio de sacudidelas, abanões e pontapés, lá o voltava a colocar na
sua posição de espantalho: pés bem enterrados na terra, braços
estendidos para os lados e uma careta aterradora que, segundo pensava
o lavrador, teria que ser suficientemente feia para afastar qualquer
animal, alado ou não, que tivesse a ousadia de comer alguma
sementinha que se encontrasse mais à superfície.
O
pobre espantalho aguentava os modos bruscos do lavrador e a troça
dos bichinhos do campo com muita resignação. Mas voltava sempre a
olhar para o céu, as nuvens, os pássaros e as
borboletas...
-
Ah, se eu pudesse voar! - murmurava ele, com ar sonhador. -
Deixar-me--ia embalar ao sabor da brisa da tarde e iria visitar terras
longínquas, voaria sobre as falésias, sobrevoaria praias do outro
lado do mundo e subiria tão alto quanto as estrelas...
-
És um palerma! - desdenhavam os ratinhos do campo, as joaninhas e as
flores. - Os espantalhos não voam!
O
infeliz espantalho suspirava e baixava o rosto de palha, perdido nos
seus sonhos impossíveis.
Mas
um dia...
Um
dia, o céu escureceu e tornou-se côr de chumbo. Grossos pingos de
chuva caíram sobre a terra e um forte vento começou a soprar,
fazendo com que todos os bichinhos se escondessem nas suas tocas e
ninhos.
O
espantalho apertou o casaco rasgado contra o peito e encolheu-se,
enquanto a chuva o molhava cada vez mais. O ribombar de um trovão
ecoou--lhe nos ouvidos, fazendo com que se assustasse.
-
O que é isto? Que barulho é este? - gritou ele.
O
vento, cada vez mais forte, fez com que as suas palavras se perdessem
no ar. Outro trovão ensurdecedor quase o fez desmaiar de medo e,
nessa
altura, sentiu que o seu corpo de palha oscilava.
-
Os meus pés... estão a mexer-se! - exclamou o espantalho. - EU
estou a mexer-me!
Repentinamente,
um golpe de vento mais forte levantou-o do chão e levou--o pelos
ares, fazendo-o rodopiar. A paisagem à sua volta modificou-se e,
quando o espantalho conseguiu finalmente parar de rodar, percebeu que
o seu maior sonho se realizara: estava a voar!
-
Oh... - murmurou ele maravilhado, arregalando os olhos.
As
casas ficaram tão pequeninas que pareciam miniaturas e as árvores já
não passavam de uma imensa mancha verde. Os carros e os tractores
eram autênticas formigas e as pessoas assemelhavam-se às
sementinhas que o lavrador atirava à terra, na época das
sementeiras.
Nem
em sonhos ele pudera ver tantas coisas tão bonitas: praias de areia
fina, lagos cristalinos que espelhavam o arco-íris, bosques
verdejantes, vales profundos e misteriosos e montanhas tão altas que
ele quase as poderia tocar, se esticasse os braços.
Mas,
o melhor de tudo, era a enorme sensação de liberdade e paz que
experimentava... Voar era, de facto, a coisa mais maravilhosa do
mundo!
Nisto,
o espantalho sentiu um imenso calor: tinha sido atingido por um raio
e, como era de palha, começou a arder rapidamente enquanto
prosseguia o seu vôo sem rumo.
-
Vou desaparecer... - suspirou ele. Estranhamente não sentia medo. -
Mas, pelo menos, consegui realizar o meu sonho; eu sabia que isso
iria acontecer um dia. Só tenho pena de não poder contar às minhas
amigas flores, aos ratinhos do campo, às joaninhas e às formigas
como é bom voar!
Ao
contrário do que o espantalho pensava, ele não desapareceu
completamente; uma pequenina parte do seu corpo continuou a planar ao
sabor do vento, iluminando com uma centelha minúscula de luz o
crepúsculo que, lentamente, ia dando lugar à noite.
Lá
em baixo, uma menina acabava de erguer a cabeça para o céu,
passeando o olhar sonhador pelas estrelas que, de lá de cima,
pareciam piscar-lhe os olhos.
-
Mãe! Vi uma estrela cadente! - exclamou ela, enquanto o espantalho
cruzava os ares na sua infindável viagem.
-
Então tens de formular um desejo! - disse a
mãe,
sorrindo. - Fecha os olhos e pensa no que mais gostarias de ter ou
fazer...
A
menina fechou os olhos, apertou as mãozinhas uma contra a outra e
concentrou-se. Repentinamente, o seu rostinho abriu-se num enorme
sorriso e a sua voz infantil ecoou no silêncio da noite estrelada:
- Eu desejo poder voar!
- Eu desejo poder voar!
Wednesday, April 25, 2012
A dor em mim
A
dor em mim
Dói-me
o silêncio
Deste
vazio em que caí, desamparada,
Ao
pressentir que já não posso fazer nada
E
que mil sombras estão, agora, sobre nós...
Dói-me
a ausência
Que,
tantas vezes, foi a minha companhia
Que
transformou em negra noite o meu dia
E
que, em mim, da música calou a voz!
Dói-me
a lembrança
De
minaretes envoltos em luz dourada.
De
leves gôndolas na bruma prateada,
De
praias cheias de ouro puro e azul sem fim...
Resta
o silêncio
Repleto
de ecos dessas horas de magia
Que
escuto agora, nesta lenta agonia
pois
sei que és tu, somente tu, a dor em mim...
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